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O Conto de Cecília

~ Uma história original por Vitor "Vinski" Ripinski


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Capítulo 1: Prólogo

O quarto estava escuro, janelas fechadas com a luz do sol passando apenas pelas frestas da madeira rachada. O cheiro de mofo e de azedo se acumulava no ar estagnado. Sentada no chão, costas frias contra a parede, abraçando os joelhos, a pele alva pouco era pega pelos fios de luz, tinha seus olhos fixos em nada no canto escuro. Cada ruído do lado de fora a fazia estremecer: passos, rangidos, vozes, tudo era igual.

Dias se passaram, mas sem dormir direito, tudo parecia um mesmo dia contínuo, o mesmo dia da tragédia. A lembrança das mortes queimada em sua mente como marca de ferro quente. Corpos espalhados, gritos sem nome, cheiro de sangue e fuligem. Ela ainda sentia as mãos manchadas de vermelho, as armas que empatou contra os inimigos quando lutou pela sua vida. O mundo parecia pequeno e vazio, e a solidão esmagava qualquer pensamento além do medo e da culpa.

O pai bateu na porta, chamou uma vez. Ela ignorou. Ele sabia que não era hora de repreender. Mesmo rígido, deixou-a sozinha, percebendo que nenhum discurso serviria para atenuar o que se passava dentro dela.

Ela quis por fim a toda essa dor, parar as vozes, parar… tudo.

  • Ah… se essa carne cansada pudesse só sumir, definhar e virar poeira ao vento… mas não, nem a benção de escolher quando desistir os deuses nos permitem…

Mas desistir não era uma solução, era uma fuga. Uma faca fria não resolveria nada. Ela só podia aceitar a verdade como era e seguir em frente.

Ela precisava fechar um capítulo, deixar o passado para trás e seguir em frente. Visitar suas lápides e ver o local de repouso final de cada um deles, o ponto final de sua história.

Levantou-se, sentiu os músculos doloridos, os ferimentos ainda mal curados e a garganta seca. Cada respiração precisava de esforço, mas havia ao menos alguma determinação. Sabia que deveria sair daquele quarto, caminhar até onde ele foi sepultado e encarar o que restava.

Com sua traição se foram suas esperanças, com sua morte a possibilidade de um acerto de contas, então com seu corpo iriam também suas mágoas… E tudo mais que tiver deixado nessa vida.


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Capítulo 2: A Recruta Relutante

O sol nascia pálido sobre Reuhtor, tingindo a cidade e suas muralhas de dourado e vermelho, como as cores da bandeira. As casas se empilhavam na base ao redor da grande colina e o palácio em seu topo, e o som dos cascos e martelos ecoava pelas ruas. Lá embaixo, entre os novos recrutas, uma jovem de cabelos pretos e olhar entediado encarava o uniforme bege e a lança dourada em suas mãos.

  • Sério que não tem na cor preta? - murmurou, torcendo o nariz.

Era o primeiro dia de Cecília no exército. O pai lhe dera duas opções: o convento ou a tropa. Escolhera o exército por achar o clero um tédio sem fim, mas agora se arrependia de cada segundo da decisão.

Os outros novatos a cercavam no pátio de treino. Havia Borin, o grandalhão desastrado que ria alto demais; Lyra, uma elfa esbelta e falante, que tentava puxar conversa mesmo com quem não queria; Edran, o estudioso pálido de oculos tortos que carregava anotações até no campo; Sibyl, moleca ruiva de corpo forte, calma e sonhadora, sempre olhando para o céu; e Thorek, um anão esquentado sempre pronto para uma briga. Um grupo tão estranho que parecia tirado de uma história de taverna.

O Treinador Trevor era um homem alto e robusto, de pele escura e olhar severo, caminhava entre eles com uma vara nas mãos, corrigindo posturas e distribuindo broncas e sarrafos.

  • Lança não é vassoura, garota. Postura reta. - disse ao ver Cecília relaxada, apoiando o peso na arma. Ela revirou os olhos, mas obedeceu, só o suficiente para ele não insistir.

Com o passar das semanas, a rotina a moldava. O corpo doía, os músculos reclamavam, mas havia algo reconfortante na companhia daqueles outros jovens esquisitos, no som dos passos alinhados, na evolução em conjunto. Cecília começou a se adaptar, mesmo que não admitisse.

Foi num evento da guarda, meses depois, que tudo mudou. Ela servia como escudeira de um cavaleiro convidado, polindo sua armadura rubra. Ele se apresentou com um sorriso tranquilo e voz gentil. Cabelos longos e ruivos de um vermelho frio, olhos claros, postura de herói.

  • Zanael, a seu dispor. - Disse com elegância e etiqueta.

Cecília olhou de cima a baixo, com desdém.

  • Claro… o famoso cavaleiro perfeito. Deve até brilhar no sol.

Ele riu sem se ofender, e aos poucos o dia ao lado dele passou leve. Zanael tratava todos com bondade, até mesmo os servos e recrutas. Falava do dever, do povo, do que significava proteger. Cecília começou cética, mas ao passar do dia foi ouvindo com mais atenção. Quando o evento acabou, algo havia mudado. Ela entendeu por que todos chamavam aquele homem de herói, e como o exército era um símbolo, uma muralha, pelo bem de Reuhtor.

Nas semanas seguintes Zanael se tornou mentor dos novatos, auxiliando em seu treinamento. Ela se viu ficando para trás ao longo dos meses, mas agora tinha vergonha de não ser o bastante. Ele a inspirava a ser melhor. Então ela treinou de verdade. Buscou Dhalila, A Dama das Armas. Uma elfa ferreira mestre combatente, pedindo ajuda para melhorar sua técnica. A elfa com olhar firme e cabelos como uma juba de palha, apenas assentiu.

  • Se quer lutar, lute com propósito. Se não, vá embora. - disse enquanto bebia mais um gole de uma ânfora de vinho em meio às marteladas na forja.

E Cecília ficou, por semanas saindo do quartel rumo a treinar ainda mais durante a noite, com propósito e disciplina. Algo empolgante surgiu em ficar melhor. Quando retornou no sexto mês do treinamento básico para a prova final, ela esperou ansiosa pela resposta do Treinador. Ele fez sombra com seu corpanzil largo e sorriu. 

  • Você cresceu bastante, Garota. - E ela sentiu orgulho pela primeira vez. 

Zanael olhou de canto e piscou um olho com um sorriso. Ela se sentiu querida, e reconhecida.

Os recrutas comemoraram o fim do treinamento, celebrando com bebidas e farra, indo de taverna em taverna, puxando algumas brigas e alguns romances de uma noite só. Uma amizade forte foi se criando junto das memórias mais estúpidas e vergonhosas. Depois desses meses juntos eram como uma pequena família desregulada. 

Depois de formados, era hora de sua primeira patrulha. Tenente Luthien, uma elfa patrulheira de cabelos pretos sempre muito bem presos em um coque, com olhar sério e contido, foi a instrutora do recém formado pelotão. Ela falava pouco, mas cada palavra tinha peso e propósito. Nomeava as flores pelas quais passava e dizia que mesmo nas guerras, a natureza ainda florescia.

O grupo partiu empolgado. Riam, faziam piadas, sonhavam com glórias e fama. Cecília se sentia viva, com esperança, algo raro.

Mas poucos dias depois, os sinos soaram. O exército seria enviado para a Fortaleza de Estras para averiguar um avistamento de tropas do clã Hourk. 

O primeiro combate real… O medo se espalhou entre os jovens, mas o entusiasmo também. Uns tremiam, outros gritavam por coragem. Edran tremia, mas Borin berrava empolgando os amigos. Até Sybil que era mais quieta entrou na onda e urrou entusiasmada. No fim, todos estavam ansiosos. Foi pra isso que treinaram! Cecília olhou para o horizonte e sorriu ao lado deles.

Então o vento trouxe o cheiro de ferro e fumaça. E a guerra começou.


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Capítulo 3: Primeiro Sangue

Quando chegaram ainda era noite, cansados demais da marcha para batalhar, então montaram acampamento. Mesmo exaustos os recrutas ainda riam e brincavam que iam matar mais inimigos que os outros. Mas ainda antes do amanhecer seu descanso foi interrompido por disparos de besta. Batedores Hourk os acharam. Sibyl foi ao chão ainda com os olhos abertos, um virote contra a parte macia do crânio, a pele se pintando de vermelho no mesmo instante. Todos olharam estáticos vendo a companheira morrer em frente aos seus olhos em um mísero instante, percebendo como a vida era frágil… antes de Luthien disparar seu arco contra o olho de um inimigo, urrar e comandar o pelotão: 

  • Ataquem!

O conflito seguiu daquele ponto, o exército mal descansado direto para a batalha, essa mais sangrenta e visceral do que qualquer um dos recrutas podia esperar. 

O chão tremeu com o peso dos Ogros. Gigantes esverdeados, quase o dobro da altura dos recrutas. Avançavam com ferocidade, esmagando escudos e lanças. Dois de seus colegas já jaziam no chão frio, irreconhecíveis sob a armadura rubra ensanguentada. Os óculos de Edran tortos e quebrados na lama.

Zanael estava do outro canto do front, enfrentando o líder dos ogros. Pouco poderia fazer pelos recrutas, mas ela rezou por sua proteção. Implorou aos deuses que mandasse ele vir salvar ela e seus companheiros restantes.

Cecília estava imóvel, olhos arregalados. Ela assistiu quando Lyra soltou um grito estridente antes de ser calada por uma maça de ferro que partiu seu crânio. A adrenalina não vinha, apenas o medo sufocante.

O novato que sobrara correu até ela, agarrando seu braço com força. Era Borin.

  • Vai ficar tudo bem! - Gritou, tentando convencer tanto ela quanto a si mesmo. Tinha o peso da culpa em sua voz. Foi ele que os motivou. Ele corria e arrastava ela para longe, era sua responsabilidade agora!

Apenas por conta dele que sobreviveram ao primeiro dia. O cansaço veio todo de uma vez, o corpo não tinha forças nem para se manter em choque. A poeira baixou, deixando no ar apenas o cheiro de ferro que o sangue tinha. Retornaram ao acampamento, mas sabiam que não tinha acabado. Porém Zanael não estava lá… Nem nenhum de seus homens. 

O amanhecer veio com mais sangue, os soldados restantes foram para cima da tropa diminuta que restava dos ogros. Borin ficou lado a lado com Cecília, sentindo que era sua responsabilidade protegê-la. Colocou seu corpo como escudo, e como um escudo ele foi acertado, inúmeras vezes, até não restar forças para se manter de pé. Ela assistiu-o tombar, o último de seus companheiros.

O mundo de Cecília pareceu girar, lágrimas começaram a escorrer de seus olhos sem parar, suas mãos frias tremiam, o coração disparado parecia que ia sair pela boca. Com o pânico o medo deveria dominá-la, mas algo mudou. Um ódio quente e pesado tomou seu corpo. O mundo era vermelho.

Ela correu com um urro gutural, lança em punho em uma investida direto no bucho do ogro que o matou. Seu abdômen verteu vermelho e ele gorgolejou sangue. A arma ficou cravada nele e de outro ogro caído ela tomou o machado, arremessando contra outro inimigo pelas costas. De um soldado raso ao chão ela pegou a espada e começou a dilacerar quem estivesse pelo caminho. Cada golpe era um grito de fúria, cada punhalada era vingança. O sangue de seus companheiros, o próprio pânico, tudo convergia em ódio. Ela se moveu com brutalidade e precisão, matando ogro após ogro, sem pensar, apenas agindo instintivamente. Vermelho!

Então o silêncio. Reuhtor venceu, os soldados recolhiam corpos e espólios entre gritos e gemidos.

Cecília sentava-se entre escombros, trêmula, choro silencioso pingava dos olhos, braços encolhidos sobre o corpo, pendendo sem forças. Dhalila passou por ela, parou por um instante e tocou seu ombro de forma triste, mas reconfortante, antes de seguir adiante.

Ela mal respirava, os olhos fixos na destruição, a mente girando com remorso:

  • Onde estava Zanael quando todos precisaram dele?


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Capítulo 4: Promoção

Depois de quase um dia de viagem de volta para a cidade de Reuhtor, os mensageiros trouxeram notícias. Logo se espalhou pelo exército que a cidade tinha sido atacada em sua ausência! Quando viram a colina no horizonte, viram também a fumaça negra que subia do incêndio no mercado. Dentro dos muros, uma chacina. Civis, guardas, todos abatidos como porcos, se não queimados pelo fogo. 

Cecília não tinha forças para se alarmar, apenas ajudou a tirar os escombros de cima dos corpos e recuperar os restos mortais dos aldeões. Viu alguns rostos conhecidos entre eles, mas não tinha mais lágrimas para chorar. 

No final do dia, de volta ao quartel, pendeu sentada em descanso, quando um oficial com uma lista em mãos aproximou-se, sem qualquer expressão, nem a olhando nos olhos.

  • Ei você, recruta. Sua tenente morreu e só sobrou você do pelotão 8. Parabéns pela promoção… “Tenente Cecília”. - Ele disse, sem expressão, e voltou a seus afazeres sem olhar para ela.

Cecília congelou. Todos os amigos, todos os novatos. Mortos. E agora… a tenente Luthien também? Receber uma promoção assim era irônico demais, era cruel.

Ela engoliu em seco e, com voz trêmula, levantou-se:

  • E… Zanael? Onde ele estava durante a batalha? - Sua garganta secou com dúvida.

O oficial parou, olhou de cima a baixo e rosnou rouco, com uma sobrancelhada.

  • Disseram que o filho da puta nos traiu. Enquanto lutávamos em Estras, ele estava incendiando o mercado, esquartejando o próprio povo ao lado dos Hourk. Bastardo nojento… É o que acontece quando depositamos tanta confiança em um homem só. Mas não se preocupe. - Ele cuspiu no chão, depois olhou nos olhos dela. - Ele foi abatido como o cão sarnento que é.

Cecília sentiu o sangue congelar, incapaz de respirar direito. 

  • “Zanael… era um traidor? Ele… Esquartejou nosso povo?” - Pensou em silêncio. Primeiro entrou em negação. Não podia ser, devia ser um engano… Então aceitou por um instante e logo sentiu um gosto amargo, tendo nojo de ter confiado nele, de ter… Se inspirado nele!

Tudo estava morto. Os companheiros, o heroísmo, a glória e os sonhos falsos! Ela não podia argumentar, não podia gritar. Apenas ficou ali, em choque, absorvendo a fúria silenciosa e o vazio que parecia sugar a luz do mundo.


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Capítulo 5: Prólogo - Epílogo

Tinha passado tempo demais enfurnada naquele quarto escuro, tempo demais esperando os problemas dentro de sua cabeça se resolverem sozinhos, e sabia que não ia acontecer. Não era com uma faca que ia resolver tudo, era fechamento, era ver uma lápide concreta e real. 

Quando partiu, o sol nascia fraco, tingindo de vermelho o horizonte como sangue fresco Vestia a armadura que recebeu como tenente, levava a alabarda que veio com o cargo, junto da tragédia e do nome de um traidor nos lábios.

No cemitério, visitou o memorial dos soldados caídos em Estras, os túmulos do batalhão 8… Mas havia terra remexida ao lado. O túmulo de Zanael? Vazio, aberto. Na cova um cacho de cabelo ruivo preso entre pedras. A espada dele, caída, fria.

Mas nenhum corpo. Apenas uma direção na terra arrastada… Um destino.

Cecília pegou a espada.

  • Onde quer que seja… se estiver vivo, vou matá-lo, se estiver morto, vou trazer de volta seus restos mortais. Seja como for, vou enterrar o seu cadáver junto de toda mágoa que me causou.



1 comentário


Zaravas
Zaravas
há 13 horas

to ansioso pra ver como a Cecília vai estar em contos futuros

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